Nossos corpos não foram mais os mesmos das últimas duas décadas para cá. Ao passo que, entre os anos 1980 e 1990, por exemplo, David Cronenberg realizava filmes de ficção científica, como A Mosca (1986) e Crash (1996), nos quais se apresentavam os corpos humanos manipulados e transformados pela ciência, pela tecnologia e por novas perspectivas de biotecnologia, hoje tais possibilidades não parecem tão incomuns ou integrantes de um cenário de futuro distópico e distante.
Pelo contrário. Nossa anatomia está definitivamente alterada (e em constante transformação), em decorrência da presença e da extensão cada vez mais constantes e naturalizadas de dispositivos como smartphones, pequenas câmeras e microfones que dormem ao lado das nossas camas, como se nossas vidas fossem realities shows bancados por nós mesmos e nós mesmas.
Contudo, aqui fica uma pergunta, afinal, esta é uma coluna de cultura: como que a arte se coloca em meio a tudo isso? Ah, a arte, claro! A maldita arte para alguns e algumas! Bem, a arte não poderia deixar de tecer as suas problemáticas, poéticas, poiéticas e provocações. A arte sempre encontra caminhos entre as pedras, feito o leito de um rio que se vasculariza entre as bifurcações e que, mesmo diante da seca, conserva algum filete subterrâneo, a vertente sempre disposta a resistir. Até mesmo nas formas mais improváveis.
E gostaria de falar, aqui, sobre a arte e a tecnologia em especial. A propósito das tecnologias que, das mais tradicionais às mais contemporâneas e cibernéticas, não são temas tão recentes de pesquisa no mundo da arte. Desde o advento do cinema, por exemplo, na virada do Século XIX para o XX, já eram investidos debates, incursões, investigações, mexericos curiosos por parte de pessoas que gostariam de explorar a "alma" por detrás das novas engenhocas.
Porém, nunca é tarde para se surpreender. Mesmo quando ser original parece impossível. Tanto que, nesta semana, fui presenteada em conhecer o trabalho de uma fotógrafa, uma performer, uma artista, uma mulher! Danielle Lessnau é seu nome! Danielle transformou seu corpo numa câmera fotográfica. Até este ponto, nada de completamente novo. Entretanto, Danielle transformou a sua vagina numa câmara escura, da qual fotografou seus amantes do passado e do presente. Daí, nasceu o trabalho intitulado Extimité.
Sim, Danielle criou não apenas uma câmara, mas oito câmaras estenopeicas, sem objetivas, sem visores - comumente conhecidas como pinholes - as quais eram acionadas por ela mesma, numa criação tecnológica e artística bastante íntima e adequada à sua anatomia. Assim, a vagina de Danielle converteu-se duplamente numa câmara escura: da sua intimidade para a arte e a tecnologia.
Em comum acordo com seus amantes de ontem e de hoje, Danielle disparou suas câmaras, resultando no ensaio fotográfico disponível neste endereço aqui. Ensaio nos limites da intimidade e do estranhamento, da vulnerabilidade e do poder, do privado e do público.
A proposta de Danielle é um grito para as mulheres e, sobretudo, as artistas. Inclusive no Brasil. Às vésperas de mais um Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, exemplos como o de Danielle Lessnau - que, de forma tão simples, própria, sincera e provocadora - trazem os seus olhares sobre uma sociedade e fazeres artísticos ainda tão dominados por homens. Paralaxes sutis sobre corpo, sexualidade, gênero, afeto, liberdade, isonomia e... arte!
Conheço, além de Danielle, outras artistas que estão na busca por revelar as suas câmaras escuras, como a Priscila, a Indira, a Cândice, a Melina, a Renata, a Stéfani, a Carolina, a Andrea, a Carla, a Aracy, a Susane, a Nikelen, a Joelma, a Juliane, entre outras. Hoje, nossa jornada parece mais longa e obscura do que de costume, diante de tantos caminhos que estão se fechando e sendo nublados no Brasil.
Mas, para além deste e de outros Carnavais, a arte seguirá com seus fluxos, revelando-se nas bifurcações e conservando aquele fiapo de vertente no deserto.